A entrega da casa é suficiente para saldar a dívida ao banco?
A profissão de Perito Avaliador de Imóveis permite-nos perceber os dramas que atravessam o quotidiano de muitas famílias. Um desses dramas, talvez o maior, é a entrega da casa de morada de família ao credor hipotecário, quando as famílias não conseguem cumprir os compromissos que assumiram.
É um assunto importante, estudado por muitos setores, inclusivamente por empresas seguradoras, que já aparecem com soluções de garantia de preço de um imóvel durante um período longo de tempo, garantindo a indemnização da menos-valia realizada pelo proprietário vendedor.
Quando estas situações acontecem com mais acuidade, vem sempre a debate a questão de saber se a simples entrega da casa ao Banco é suficiente para que se considere o crédito resolvido. Na nossa opinião, o debate tem-se colocado mais no plano político e ético e menos no plano técnico. É precisamente o plano técnico que queremos abordar neste artigo, com a modesta pretensão de esclarecer o leitor e deixar-lhe pistas para que possa analisar a temática com algum conhecimento.
Começando pela legislação, temos o Regulamento (UE) nº 575/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, relativo aos requisitos prudenciais para as instituições de crédito e para as empresas de investimento, no seu artigo 229, que refere:
“1. Para as garantias imobiliárias, a caução deve ser avaliada por um avaliador independente pelo valor de mercado ou por um valor inferior. As instituições solicitam ao avaliador independente que documente de forma clara e transparente o valor de mercado.
Nos Estados-Membros que estabelecerem critérios rigorosos para a avaliação do valor dos bens hipotecados em disposições legais ou regulamentares, os imóveis podem em alternativa ser avaliados por um avaliador independente pelo valor do bem hipotecado ou por um valor inferior. As instituições devem solicitar ao avaliador independente que não tome em consideração os elementos especulativos na avaliação do valor do bem hipotecado e que documente esse valor de forma clara e transparente.”
Em Portugal, a prática instituída tem sido avaliar a caução pelo “valor de mercado ou por um valor inferior”.
Mas existem recomendações das entidades do sistema financeiro que sustentem tal prática?
Antes da promulgação do Decreto-Lei nº 153/2015 esteve em discussão pública o documento “A avaliação e valorização de imóveis – uma abordagem integrada para o sistema financeiro português – documento de consulta, dezembro de 2013, do Banco de Portugal, CMVM e Instituto de Seguros de Portugal”, que salientava:
“Quanto ao conceito de valor do imóvel, para o setor bancário adota-se o conceito de “valor do bem hipotecado” (mortgage lending value ou MLV), como limite superior, para todos os imóveis que caucionam créditos hipotecários. Trata-se de um conceito “through-the-cycle” (e não “point-in-time”), o qual tem por base uma avaliação prudente do valor do imóvel, considerando os aspetos sustentáveis a longo prazo desse imóvel e as condições normais do mercado, afastando assim os elementos especulativos dessa avaliação.”
O Aviso 5/2006, que surgiu na sequência da publicação do Decreto-Lei nº 59/2006, de 20 de Março, que instituiu um novo regime jurídico aplicável às obrigações hipotecárias e às obrigações sobre o sector público, determina os termos da avaliação dos bens imóveis hipotecados em garantia dos créditos afetos a essas obrigações e define que o valor do imóvel é o valor do bem hipotecado e:
“2.º - 1 - Por valor do bem hipotecado entende-se o valor comercial do imóvel, determinado com base em critérios de prudência e considerando os aspetos sustentáveis de longo prazo do imóvel, as condições normais e do mercado local, a utilização corrente e as utilizações alternativas adequadas do imóvel.
2 - O valor do bem hipotecado considerado pela instituição não pode ser superior ao valor de mercado do imóvel, entendendo-se por valor de mercado do imóvel …”
Existe ainda outra singularidade, que consiste no facto do Banco de Portugal, nas suas recomendações prudenciais, definir, por exemplo, o “Loan-to-value” como a relação entre o valor do imóvel (que valor? Valor de mercado ou valor do bem hipotecado?) e o valor do empréstimo.
A relação valor de mercado/valor do bem hipotecado pode ser traduzida pela figura seguinte:
Mortgage Lending Value portrayed in Bienert and Brunauer, 2007, p. 546.
Interpretando a figura, se uma entidade bancária adotar o Mortgage Lending Value (MLV), provavelmente estará defendida contra flutuações de mercado e poderá aceitar a entrega do imóvel para liquidação do incumprimento. O MLV é sempre superior ao Loan-to-Value e, por consequência, superior ao montante emprestado pelo banco.
O argumento de quem defende que a entrega do imóvel ao Banco poderá não ser suficiente escuda-se na volatilidade do valor de mercado. Compreende-se, porque temos exemplos recentes de que isso aconteceu. De facto, o valor de mercado reporta-se à data da avaliação e pode variar ao longo do tempo. Assim sendo, no momento da entrega do imóvel, em tese, este poderá ter um valor de mercado inferior ao valor em dívida.
Regressando à questão inicial, a resposta para se a simples entrega do imóvel pode liquidar o crédito será “Nim”. Terá que ser claramente regulamentada qual a noção de valor a aplicar aos contratos de crédito hipotecário: Valor de mercado ou valor do bem hipotecado?"
Nota: Este artigo é a republicação de um artigo escrito para https://out-of-the-boxthinking.blogspot.com
Sem comentários: