Ir à Baixa


Continuando a divulgar artigos que escrevi noutros blogues, relembro um que fiz para a “Brainsre News Portugal”, um “local de culto” para o jornalismo imobiliário!


A convite do José Covas, eu tenho escrito todos os meses numa rúbrica intitulada “Protagonistas”. Perdoem-me todos os outros fóruns onde escrevi até agora, mas este é aquele onde me dá mais prazer fazê-lo. A razão é muito simples, dá-me a liberdade de escrever sem estar amarrado à minha profissão de perito avaliador de imóveis.


O artigo que partilho, pressupondo que a “Brainsre News Portugal” não se vai aborrecer, pois quando escrevemos os escritos deixam de ser nossos, é o “7, Ponte da Pedra”. Hoje apetece-me passear pela mão da minha Mãe e também desvendar que o caixeiro-viajante reformado, o experiente Zé Afonso, é o meu Sogro:


João Fonseca | Perito Avaliador de Imóveis

Foto de 1974 [Porto Desaparecido]

“Uma das características mais interessantes da minha profissão é a sua diversidade. A monotonia dos dias não se faz sentir, porque um dia não é igual ao outro. Hoje aqui, amanhã ali, e muitas vezes em Lisboa. E assim comecei a adorar esta cidade e a perceber melhor que podemos ser bairristas sem perdermos a racionalidade.

 

A vida tem destas coisas, ensina-nos!

 

Todas as avaliações são preparadas da mesma forma. Começam no pedido de cliente, passam pela verificação de conflitos de interesse e de branqueamento de capitais, pelo envio dos termos de contratação, pela aceitação do cliente, pela preparação da vistoria e consuma-se na entrega do relatório de avaliação ao cliente. É um processo que se repete, dia após dia, cliente após cliente, avaliação após avaliação.

 

E esta avaliação teria os ingredientes de todas as avaliações, não fosse feita na minha cidade. Um imóvel bem na Baixa. Cá no Norte, não dizemos que vamos ao Porto, dizemos que vamos à Baixa!

 

E num repente senti-me levado pela mão da minha Mãe a apanhar o “7, Ponte da Pedra” para irmos à Baixa. O “7, Ponte da Pedra” parava à porta da minha casa e levava-nos direto ao Campo, que era como chamávamos à Praça da República. Descia para a Rua da Boavista e irrompia pela Rua de Cedofeita adentro até aos Leões, que é como quem diz a Praça Gomes Teixeira. E eu lá ia, altivo, tipo “Zézé” no carro do Portuga, naquele livro mágico que é O meu pé de Laranja-Lima, de José Mauro de Vasconcelos.

 

Todos os motivos nos faziam ir à Baixa. Fosse para visitar o meu Avô, que trabalhava na Papelaria Central, fosse para ir comprar roupa, ou até que fosse para outras coisas menores, como comprar o balão para a máquina de café. O balão era comprado na Casa Tamegão, que ficava na esquina da Rua Sá da Bandeira com a Rua Formosa. Ficava, já não fica, pois a Casa Tamegão, como muitas outras casas importantes da Baixa, fechou portas.

 

Nas nossas idas, a minha Mãe tinha sempre uma tarefa árdua, a de me arrastar da montra da Foto Malacó, ao virar da esquina da Rua de Sampaio Bruno. Os meus olhos ficavam especados e esbugalhados a ver as fotografias dos jogos no Estádio das Antas, tiradas ao nível do relvado e muito perto dos jogadores, ainda a preto e branco. E eu ficava atónito a ver de perto o Rolando, o Leopoldo, o Nóbrega, o Rodolfo, o Cubillas, o Tibi e todo o meu imaginário.

 

Naquele tempo, a Baixa tinha tudo o que lhe falta agora. Tinha gente, tinha moradores, tinha o Mercado do Bolhão, tinha comércio.

 

Enquanto aguardava a hora da vistoria, sentei-me no jardim interior da unidade hoteleira que substituiu a “Regaleira”. Entre um cimbalino e um bolo, dei-me a pensar como é que o Porto tinha definhado.

 

Os fluxos de pessoas davam-se da periferia para o centro da cidade. Esta é que tinha a primazia do comércio, cujas zonas comerciais eram arregimentadas por tipo de artigo.

 

Desde a Rua da Galeria de Paris, agora convertida à vida noturna, passando pelo Largo dos Loios e estendendo-se até ao Largo de S. Domingos e Rua Mouzinho da Silveira, fervilhavam armazéns de tecidos. Uma vez, em amena cavaqueira com um caixeiro-viajante reformado, o experiente Zé Afonso, que veio aos 13 anos desde o Alentejo trabalhar para uma destas empresas, contabilizámos trinta armazéns. Este ramo de atividade era tão pujante que distribuía para todo o país.

 

Mas havia mais. A Rua da Picaria dedicava-se ao comércio de mobiliário, a Rua do Almada vendia ferragens. Os armazéns de miudezas ficavam na Rua das Flores e na Rua de Cedofeita. Os despachantes oficiais assentavam praça na Ribeira.

 

Tudo se transformou nos anos seguintes ao 25 de Abril.

 

O poder local tornou-se mais afirmativo e surgiram na Área Metropolitana do Porto alguns concelhos limítrofes que começaram a ameaçar a hegemonia do Porto. Estes concelhos começaram a investir na construção de habitação, embora caoticamente, e na criação de condições de vida que se tornavam atraentes para a população. Não descuraram também condições para empresas se instalarem.

 

Entretanto, as cidades como o Porto congelavam-se numa lei das rendas obsoleta, que prejudicou o mercado de arrendamento habitacional e comercial, que não fez mais do que ajudar a esvaziar o centro das cidades. Posteriormente, o incentivo à compra de habitação com bonificação de juros também contribuiu para essa realidade.

 

Paulatinamente, a cidade foi-se perdendo. Um barómetro desse esvaziamento foi o declínio de dois grandes mercados, o Mercado do Bolhão e o Mercado do Bom Sucesso.

 

Já me esquecia da minha vistoria. Era um prédio com vários pisos de comércio, ali perto do Sá da Bandeira, que um proprietário com visão não permitiu que fosse colocado em alojamento local.”

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